sexta-feira, fevereiro 17, 2012

Memórias

"Havia também os que se apresentavam sozinhos, braços de fome, a oferecerem a nádega à seringa a troco de uma cama onde dormir, clientes habituais que o porteiro reenviava, de imperioso braço estendido à estátua de Marechal Saldanha, para as árvores do Campo de Santana que o escuro confundia numa névoa de corpos abraçados. Aqui, pensou o médico, desagua a última miséria, a solidão absoluta, o que nós próprios não aguentamos suportar, os mais escondidos e vergonhosos dos nossos sentimentos, o que nos outros chamamos de loucura que é afinal a nossa e da qual nos protegemos a etiquetá-la, a comprimi-la de grades, a alimentá-la de pastilhas e de gotas para que continue existindo, a conceder-lhe licença de saída ao fim de semana e a encaminhá-la na direção de uma «normalidade» que provavelmente consiste apenas no empalhar em vida."

Texto: Excerto de "Memórias de Elefante" de António Lobo Antunes
Imagem: Fotograma de "Requiem for a Dream" de Darren Aronofsky

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