quinta-feira, fevereiro 21, 2008

A Paz Em Tempo De Guerra

"Minha querida Isabel, neste preciso momento celebra-se uma missa de corpo presente. O melhor de todos nós foi morto. Minha querida, ou Deus não existe ou é o maior cínico do Universo. Só para tu veres, o Santos, o soldado que morreu, tinha a alcunha de Padre. Queria ir para o seminário, o Jaime estava a ajudá-lo. Rezava o terço todos os dias e lia a Bíblia. Quando fomos buscar as coisas dele, encontrámo-la aberta no livro do profeta Isaías. «Brotará um rebento no tronco de Jessé, e das suas raízes um renovo frutificará. E repousará sobre ele o espírito do Senhor, o espírito de sabedoria e inteligência». Um pouco mais à frente diz: «Julgará com justiça os pobres [...] e ferirá a terra com a vara de sua boca, e com o sopro dos seus lábios matará o ímpio.» Depois segue com estas conclusões: «E morará o lobo com o cordeiro, e o leopardo com o cabrito se deitará, e o bezerro, e o filho do leão e a nédia ovelha viverão juntos, e um menino pequeno os guiará». Isto pode ser muito bonito, minha querida, mas é a mais completa das mentiras. Estou tão revoltado, Isabel! Eu, que até pensei que me podia divertir. Mas olho para este pessoal que está na missa, acagaçado, procuro um sentido para a vida, sem que a vida tenha qualquer sentido. É o caos. E esta coisa do lobo ir morar com o cordeiro é uma grande treta. O mundo não é dos humildes nem dos mansos, é dos mais fortes, dos mais manhosos. Que raio de Deus é este que nem protege os que lhe são fiéis? Era o que a leitura parecia dizer: «Julgará com justiça os pobres e matará o ímpio». Afinal, morreu o desgraçado. Há aí uma malta que até vai comungar. Convém. Mas o único que levava a religião a sério era o Santos. E foi o primeiro a ir."

Texto: Excerto de "Deixei o meu Coração em África" (2005) de Manuel Arouca.

2 comentários:

Klatuu o embuçado disse...

Não li este, tenho de ver se o compro.

Abraço.

Mr. Lynch disse...

Klatuu o Embuçado;
Este é um daqueles livros apelidados de "light". Ainda assim é bastante interessante e Manuel Arouca faz um retrato admirável do nosso país durante os anos 60.
Abraço